Herói ou canalha. Talvez um herói canalha.
- Por Nelson Correa
- 4 novembro, 2009
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Éverton sobe esbaforido as escadas do sobrado na Lapa, onde uma tradicional casa de bilhares está localizada há muitas décadas, e onde os amigos da faculdade de jornalismo resolveram se encontrar toda terceira quarta-feira do mês, conforme acertado na festa do Jubileu de Prata da formatura, seis meses atrás.
O casarão, que já recebera a nata da malandragem e jogadores que viraram lenda em meados do século passado, é hoje uma respeitável casa onde se encontram para jogar sinuca e beber cerveja, profissionais após o trabalho, estudantes “substituindo” aulas e honoráveis senhorzinhos, antigos jogadores, que ainda mantém uma estreita relação de intimidade com a mesa de sinuca, giz azul, giz branco, tacos e bolas coloridas. E claro, não só para jogar sinuca esses homens se encontram por lá. Vão também para falar de mulheres, que são raras presenças naquele ambiente, que é quase um Clube do Bolinha.
Éverton estava atrasado, o dia tinha sido cheio e complicado, culminando com a visita do prefeito e governador no lançamento de obra para os Jogos Olímpicos de 2016. Enquanto afrouxava a gravata subindo os degraus de madeira da velha escada, ele se lembrou que o taco novo que comprou e que estrearia hoje tinha ficado na redação do jornal. Merda!
Ao chegar, antes de se dirigir à mesa 6, passou pelo bar, pediu 2 garrafas de cerveja estupidamente geladas e um copo. O calor daquele dia prometia um alto consumo. Pegou as garrafas e o copo e encontrou os amigos Abel, Beto, Carlos e Danilo já disputando uma partida.
Éverton: Cadê todo mundo, só estão vocês aqui hoje?
Carlos: Opa. Me passa aqui essas garrafas, pois o seu Manoel deve estar se ressentindo do calor de hoje e está muito devagar. A cerveja está demorando muito a chegar.
Beto: Coitado do velho, ele já devia ser garçon daqui quando o Carne Frita dava suas primeiras tacadas pela Lapa.
Carlos: Hoje só estamos nós. Esse pessoal da turma tá ficando muito devagar mesmo.
Danilo: E aí Abel, você acha que o Éverton é usuário também?
Abel mirava a bola branca na bola azul, como um sniper dorme na alça de mira da sua arma. Era uma bola de tentativa, com um leve corte à direita para a caçapa esquerda do fundo da mesa. Se acertasse, o jogo ficaria para ele e Carlos. Se perdesse, Beto e Danilo teriam tudo para endurecer a partida.
Abel: Que isso, o Éverton é um cara sério. É homem fiel e de uma mulher só.
E com firmeza, Abel bate seco a bola branca na azul, que vai morrendo mansamente na caçapa do canto esquerdo, enquanto a branca, com a leve puxada dada na tacada, ficava de frente para a bola da vez, a amarela, para a caçapa do meio. Abel levanta o corpo, passa giz na ponta de couro do taco e continua a conversa interrompida pela tacada crítica e a chegada e Éverton.
Abel: Vocês sabem que eu não consigo me controlar com mulheres. Até porque elas não me deixam em paz. Eu tenho um ímã, é uma coisa que foge ao meu controle.
Abel estava muito bem fisicamente para pouco mais de 50 anos. Praticou esporte de competição quando jovem e hoje é editor de esportes no jornal onde trabalha. Ainda nada com assiduidade e adora jogar tênis.
Abel: Há dois anos, uma menina recém formada veio trabalhar lá na editoria. Bicho, ela era uma coisa louca. Baixinha, mas toda certinha, torneada. E a danada só me provocando. Encostava de propósito em mim no elevador. Se abaixava para falar comigo na minha mesa. Comentava que ia comprar lingerie. Eu não aguentei e acabamos numa cama de motel. Saímos quase que diariamente por meses.
Éverton: Pára com isso Abel, vai dizer que a menininha se apaixonou pela sua potência? Com metade da sua idade? Tá bom.
Éverton riu e secou o copo de cerveja que tinha nas mãos. Abel não respondeu. Abaixou-se sobre a mesa, apontou o taco e… saco! A bola amarela estava na caçapa do meio.
Danilo: Ele toma remédio para impotência Éverton. Ou você acha que ele ainda ia ter fôlego para deixar essa menina louca por ele por tanto tempo?
Carlos: Mas você começou a tomar esses remédios por conta dessa menina Abel?
Abel: Claro que não. Tenho cara de bobo?
Abel fez uma pausa antes e continuar sua jogada, agora com a mesa pronta para a bola marrom se aninhar na caçapa do fundo, lado direito. Colocou mais cerveja no copo. Bebeu meio copo com sede.
Abel: Eu já usava o remédio. Quando saíamos, eu já chegava municiado. Saímos umas 10 vezes em três semanas, e eu dando um jeito de tomar o remedinho sem que ela visse. Um dia me engasguei ao beber sem água e resolvi tomar uma atitude.
Danilo (rindo muito): Desistiu dela ou ficou numazinha só?
Com firmeza, Abel bateu em cima da bola branca que estalou na marrom empurrando-a com determinação bem no meio da caçapa. A branca correu até o fundo da mesa, quicou na parede do fundo, na lateral e ficou quase na reta para a jogada na bola verde na mesma caçapa onde entrara a marrom. Novamente ele pára e passa o giz azul na ponta do taco.
Abel: Tu é bobo que eu ia desistir dela ou ficar no papai-mamãe. Antes de sairmos naquela tarde para o motel, propus usarmos o remédio naquela vez. Disse que queria experimentar como seria usar essa maravilha que todos falavam.
Éverton: Essa não! Você enganou a garota, seu bandido.
Abel: Foi uma tarde e tanto. Saímos do motel já por volta de oito da noite e vocês não imaginam o que ela me disse já dentro do carro.
Abrindo um nova garrafa que veio no balde de gelo com mais outras cinco – finalmente seu Manoel trabalhou bem dessa vez – Carlos ria tanto que quase desperdiça a cerveja geladinha.
Carlos: Abel, só você mesmo. Ela pediu para acabar com o caso pois preferia se envolver com alguém que a consumisse menos, como o Zé Mayer da novela?
Todos riram e Abel, quase sério, continuou.
Abel: Ela disse que eu não precisava tomar remédio nenhum, pois sou sempre muito bom e mais, que ela não tinha notado nenhuma diferença daquele dia para as outras vezes.
E os cinco amigos deram um alegre brinde e riram bastante da cara de pau do Abel. Abel debruçou-se novamente sobre a mesa de sinuca para continuar sua tacada matadora.
Carlos: E foi com essa menina que você foi iniciado no remedinho, Abel?
O taco de Abel espirrou e a bola verde resvala nos dois bicos da caçapa e se oferece para os adversários poderem limpar a mesa. Parecendo aborrecido, Abel, com a testa franzida se dirige ao seu parceiro.
Abel: Pô, bicho. Tu me desconcentrou. Tu acha que sou doido ou um garoto bobo? Se eu tomo o remédio pela primeira vez sem saber como vou reagir e morro no motel com uma menina? Era capaz da família nem mandar buscar o corpo. Nem os filhos iam mais respeitar a memória do pai. Isso faz um puta mal para a alma.
Danilo: E o que você fez, foi ao médico antes? Fez exames? O médico te autorizou usar?
Abel: Ah Danilo, fala sério. Que médico o quê? Sou uma fortaleza de saúde. A primeira vez que usei foi depois da festa de aniversário do meu filho. Eu e a Andrea, minha mulher, estávamos levando as coisas do salão de festas para o apartamento. Numa dessas idas tomei o remédio em casa. Transamos loucamente na garagem do prédio, depois continuamos na cozinha lá de casa e fomos direto a madrugada inteira. Se morro naquele dia, ia ser santificado pela mulher. Ia ser um herói prá família, e não um canalha de alma penada.
Éverton nem reparou Beto limpar a mesa na sequência. Beto passava giz na ponta do taco, se debruçava na mesa, mirava, batia na branca e foi encaçapando da verde até a preta com tanta precisão que parecia Rui Chapéu. Éverton nunca havia parado antes para pensar que a tacada ideal tem momento certo e que nunca, de maneira alguma, deve ser jogada sem se pensar na próxima bola, seja ela na sua sequência ou para o adversário.
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com pessoas
ou fatos da vida real terá sido mera coincidência.
Foto na capa de Sachin Ghodke @ Stock.xchng
Gostei do site e do artigo.
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Parabens pelo post
Oi João!
Que legal que você tenha gostado. Muito obrigado.
Valeu também pela visita e contribuição. Os posts do Pô, meu! são livres para serem replicados, só peço que respeite as regras do Creative Commons.
;-)
Visitei seu forum e achei bem legal. Já coloquei seu link no meu blogroll.
Abraços e sucesso,
Nelson
P.S. 1) Desculpe demorar tanto com a resposta. A explicação e as desculpas estão aqui.