Qual verdade?


Imagem: Saddam no tribunalEsses meninos crescem muito rápido, ontem eu o via mais tempo dormindo que acordado e hoje, está prestes a se tornar um mestre em direito. Deixei o Rio de Janeiro quando ele era bem menino. Não vi seu crescimento. Não acompanhei de perto sua evolução. Sabia, esporadicamente, que estudava nesta ou naquela escola bem conceituada, que estava construindo uma bela carreira profissional. Qual não foi minha surpresa ao receber da sua mãe (nossa amiga Gisela), um artigo escrito por Guilherme Peres de Oliveira, publicado na edição de fevereiro/2010 da Tribuna do Advogado, revista da OAB-RJ. Naturalmente minha primeira sensação foi pensar: – Estou ficando velho!

Ultimamente tenho deixado de escrever sobre temas políticos que em outras épocas seriam posts obrigatórios aqui no Pô, meu! Não que eu tenha me frustrado com políticos, não, nada disso. Estou calejado com o “jeitinho” canalha da maioria deles praticar política. Mas confesso, tenho me frustrado como temos “aplaudido” fatos que seriam, no passado, dignos de, no mínimo, um grupo reunido na rua gritando “FORA” qualquer coisa. Guilherme escreveu sobre a Comissão da Verdade do Programa Nacional dos Direitos Humanos 3. Como o Gui (será que pega mal lembrar da antiga forma carinhosa de chamá-lo?) merece um carinho especial, resolvi falar desse assunto que já coloquei e tirei da pauta do Pô, meu! inúmeras vezes.

O Historikerstreit e a Comissão da Verdade foi o título do artigo do Guilherme. Só para que o Gui e vocês que me lêem se posicionem no tempo, eu vivi no dia-a-dia a repressão política da metade da década de 70 em diante. Meus ideais, todos, dependiam estruturalmente da liberdade. E era essa liberdade que a cada dia, víamos mais um pouco ser tomada da gente. Acho que minha repulsa contra a ditadura militar teve seu auge quando abri o Jornal do Brasil, esperando o conserto do meu carro em uma oficina de um amigo do pai do Guilherme (que coincidência!), no Flamengo (Rio de Janeiro), e li no excesso de tintas pretas das manchetes, o que se convencionou chamar de Pacote de Abril.

A maioria de nós era contra a ditadura, a favor da anistia (ampla, geral e irrestrita), das eleições diretas (JÁ!) e da liberdade. Uma minoria também era contra “aquela” ditadura, era a favor da anistia (ampla, geral e irrestrita), se dizia a favor (tenho dúvidas) da burguesa eleição direta (já) e tinham classificações intermediárias para o que chamávamos de liberdade e democracia. Mas todos juntos lutamos e conseguimos o fim da ditadura. Elegemos (indiretamente) um primeiro presidente civil, e você sabe, ainda tivemos que viver mais alguns anos sob o comando de um estropício que lambia as mãos sujas do poder ditatorial (continua de mãos dadas com o poder). Mas depois nos lambuzamos no prazer da liberdade de escolher o primeiro presidente em eleições diretas depois de quase 30 anos da última eleição. Enterramos os ossos dessa festança tocando o biltre prá fora do poder (por suspeita de corrupção). Mas aprovamos uma nova Constituição. Depois, elegemos duas vezes um presidente vindo de um novo partido, a seguir mais duas vezes um presidente de outro partido novo e ganhamos instituições que vêm se fortalecendo nesses 20 anos de democracia e liberdade (aos trancos e barrancos, mas estamos progredindo).

É verdade que eu vivi duas situações que me fizeram perceber, definitivamente, que não existe um lado bom e outro ruim. Depois de vinte anos, fui apresentado ao meu candidato a deputado da minha primeira eleição. Na época, era um combativo representante da esquerda, advogado de presos políticos e etc. Quando o conheci pessoalmente, não tive coragem de contar que tinha votado nele no passado, ele era um lobista que “ajudava” empresas a fazer negócios com um governo estadual. Alguns anos depois, fui novamente obrigado profissionalmente a participar de uma reunião com outra grande figura que viveu aquele passado político, do mesmo (?) lado que eu. Agora, ele que esteve fortemente envolvido no Mensalão do PT, atuava no lobby para “facilitar” a vida das empresas que queriam fazer negócios com o governo. Esqueci o nome de ambos, minha memória tem ficado cada vez pior com a idade. Mas dessa reunião, afora a valente determinação de não vomitar na mesa, achei horas depois de encerrada, a caneta que o figurão usara, caída no chão. Guardei de recordação (para mostrar aos eventuais futuros netos), era comemorativa do aniversário de uma grande empreiteira. O mundo dá muitas voltas mesmo.

Todo esse processo de lembranças foi detonado pelo artigo do Guilherme. Ele me fez lembrar que a discussão capitaneada pelo filósofo Ernst Nolte de um lado e pelo filósofo e historiador Jürgen Habermas do outro, conhecida por Historikerstreit, acontecida na Alemanha pré derrubada do Muro de Berlim (um ano importante), foi natural, nascida da necessidade dos historiadores, filósofos e do povo alemão de revisar e entender seu passado nazista. Ela, a discussão, não nasceu de um decreto assinado pelo presidente da Alemanha. Foi um livre embate de idéias sem nenhum viés de tribunal, onde derrotados são julgados pelos vencedores. Nuremberg estava ainda muito vivo na lembrança deles. Aliás, ao final desta maravilhosa discussão, nenhuma verdade oficial foi decretada. Será que me engano?

Minha dúvida, aproveito e peço ajuda ao Gui, em breve Mestre em Direito, é se uma discussão da história recente, formalizada por decreto presidencial, que na primeira versão tinha claro quem eram os réus, e julgada e escrita oficialmente pelos vencedores (pelo menos do momento) não seria parecida com os motivos que os triunfantes da II Guerra Mundial justificam que Hiroshima e Nagasaki foram menos odiosos que Auschwitz, Teblinka e outros? Será que nós, sociedade, não temos condição de discutir isso como fizeram os alemães naquele verão de 1986? O que falta para que o governo abra os arquivos militares da ditadura de 1964? Até entendo que para um povo que endeusa um ditador como Vargas com monumentos públicos, não é simples discutir causas e consequências da ditadura militar de 64. Quem foram os atores? Por que lutavam? Quem os apoiava? Até onde queriam chegar? Quais foram seus crimes? Existiram virtudes? São tantas perguntas que nós, sociedade, já poderíamos estar cobrando dos poderosos do momento as informações que nos ajudariam a desvendar essa caixa preta. Mas pelo visto, é possível que optemos pela formalização de um tribunal. Se me chamarem para depor, vou declarar sob juramento, que eu só aspirava à liberdade.

Foto da capa: Tribunal Internacional de Nuremberg, Wikimedia



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2 Comentários

  • Nadyégila disse:

    Não tenho bagagem para um bom comentário sobre tudo que acabei de ler. Só sei,que como todo jovem sonhador(seja em tempos de ditadura,seja hoje em tempos de medo) aspiramos nossa liberdade.
    Um texto maravilhoso esse que acabo de ler,e adoraria se você realmente voltasse a discutir política aqui. Até eu me sinto cansada de notícias sobre ações inescrupulosas do nosso governo,mas se não falarmos ficaremos alienados à essas questões.
    Adoro-te,
    Nadyégila.

    • Nelson Correa disse:

      Oi Nadyégila!

      Eu gosto de política. Eu gosto de futebol. Mas nem política e nem futebol gosto de discutir com paixão. Prefiro fazer análises com equilíbrio, mesmo que isso não seja nenhuma garantia de acerto. Religião, que é outro tema que as pessoas gostam de defender calorosamente, nem discuto… respeito e pronto. Acho que o único tema que se pode discutir com paixão é mulher, em uma mesa de homens, e vá lá… homens numa roda de mulheres.
      :-)
      Eu sempre escreverei sobre política aqui no Pô, meu! Pode ter certeza.
      ;-)
      Beijos,
      Nelson

      P.S. Nada contra homens que discutem, sexualmente, sobre homens e mulheres que também prefiram mulheres, para suas discussões acaloradas.
      :-)

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