Bossa nova é punk

Punk em Dublin, IrlandaJá tem uns dez dias que finalizei a leitura do excelente livro do Nelson Motta sobre a vida de Tim Maia. A geração mostrada no livro, a do Tim Maia, é bem antes da minha, aquele pessoal já passou dos sessenta e eu nem cinqüentão sou. Apesar de termos vivido na mesma cidade, não experimentei viver a dualidade musical dos anos sessenta no Rio de Janeiro: Bossa Nova x Rock’n Roll. Apesar da Bossa Nova ter se sobressaído, e ter sido muito importante por ter colocado a MPB no cenário mundial, eu sempre a achei muito chata. O Tim estava do outro lado, do funk, do soul, da música negra, ele se classificava como transgressor, amoroso e debochado, e gostava de se definir como “preto, gordo e cafajeste”. Antítese da pura, comportada e branca Bossa Nova.

Mas…

Há muitos anos (venho gradativamente substituindo esses valores de anos por genéricos como “muitos”, não sei por quê), quando ainda trabalhava na aviação, fui para uma cidadezinha – Cheltenham – a 2h de distância de Londres (de trem), direção noroeste, para fazer dois cursos aeronáuticos. Éramos 4 brasileiros com diária fixa paga pela companhia que trabalhávamos. Como o hotel e as passagens foram pagos antes da viagem, a diária poderia ser toda nossa, desde que não comêssemos nada. Essa hipótese foi descartada ainda com o avião estacionado no aeroporto do Galeão, momentos antes da partida.

O café da manhã, fazia parte da diária do hotel, portanto, estava pago. O almoço, era na fábrica onde estávamos fazendo nossos treinamentos, estava dentro do pacote de treinamento. E o jantar, era inviável ($$$$$) naquele até simpático hotel, apesar dos carrancudos proprietários árabes.

Era inverno. O dia trocava de turno com a noite, entre quatro e cinco da tarde. Descobri que os telefones públicos da praça, meio do caminho entre o hotel e o McDonald’s da cidade, cobravam ligação local pelas minhas chamadas para o Brasil. Brazil? Eles não deviam saber o que era. Enquanto meus três companheiros de curso iam para o McDonald’s, eu ficava quase uma hora na praça telefonando para o Brasil. Eu tinha menos de um ano de casado. Saía duro da cabine. Ô frio.

De volta ao McDonald’s encontrava a mesma cena de todos os dias daquele forte inverno inglês. Um senhor bem idoso, vestido com muita simplicidade, até um pouco roto, dirigia-se para o balcão e comprava uma caneca de McCafé. Depois escolhia uma mesa vaga, sentava-se e tirava do bolso um sanduíche embrulhado no papel, dentro de um saco plástico, que trazia de casa. Passava o resto da noite economizando o aquecimento de sua casa.

Em outra mesa, um grupo grande de adolescentes punks. Sim, punks ingleses da década de 80. Com muitos piercings, tatoos e cabelos moicano coloridos. E todos duros. Eram sempre uns 8 a 10 punks duros. A cada 15 ou 20 minutos sentadinhos (sem zona) e aquecidos no McDonald’s, um deles se levantava e se dirigia aos caixas. Comprava uma batata frita, que como um charro aqui dos trópicos, passava de mão em mão, cada um tirava um tasquinho (dava um tapinha). Depois do tempo médio padrão, outro se levantava e comprava um refrigerante que era socializado pelo grupo. A seguir vinham o café, a torta, o hamburger e a noite passava e aquecia o grupo dentro da lanchonete.

Às vezes tinha uma festinha de aniversário. Meu Deus… dava dó. Qualquer funeral da zona da mata de Minas Gerais se parece com carnaval se comparado com aquelas crianças brancas, educadíssimas e tristes. Sempre em pequeno número, menor que o dos punks, porém maior que o nosso grupo de 4 brasileiros, chegavam sem que percebêssemos e iam embora também, como corujas sem piar.

Nós não tínhamos muito o que fazer naquelas noites frias (na segunda semana comprei um Atari 2600). Ficávamos batendo papo, fazendo a hora passar, até que de repente, no som ambiente da lanchonete, tocava como um despertador para nossos ouvidos e almas saudosas, uma canção bossa nova: O barquinho. Uma vez ela tocou quando eu fazia meu pedido, tentei puxar conversa com o atendente. Ei, essa música é brasileira, é bossa nova! Chama-se The little boat. Mas a fila tinha que andar e com a mesma cara que ele ouviu o meu pedido do combo #6, ele resmungou: is it brazilian, aham. Next please. Aí a gente se enchia de coragem, pintava o rosto de verde e amarelo (figurativo hein!), calçava as luvas e as outras luvas, colocava o sobretudo e encarava feito meninos a neve lá fora até o hotel, torcendo para o nariz endurecido não quebrar antes de chegarmos a nossos quartos aquecidos. Nosso barquinho estava a um oceano de distância das nossas vidas de verdade. Mas naquela situação era bom.

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