Cozido, herança culinária judaica?


Cozido á PortuguesaO cozido é o prato mais tradicional da culinária portuguesa. Isso é verdade. Existe uma receita do verdadeiro cozido à portuguesa. Isso é mentira. Praticamente todas as regiões, concelhos, freguesias, aldeias tem o cozido como um dos três pratos tradicionais daquela comunidade, apesar das receitas nunca serem iguais. Isso é muito interessante.

Especula-se que o cozido à portuguesa tem origem judaica. No Shabat os judeus não podem, dentre outras coisas, acender fogo e cozinhar. Então cozinhavam na véspera carnes e vegetais, que seriam consumidos após o pôr-do-sol do dia do descanso. Este cozido judaico teria influenciado a cozinha ibérica. Os que contestam a tese da origem judaica questionam o uso de carnes de porco na receita. Os defensores justificam como sendo uma forma dos pseudo-ex-judeus driblarem inquisidores e se mostrarem integrados nos novos hábitos cristãos.

Independente da possível origem, uma pesquisa mais detalhada mostra que o cozido era um prato a ser consumido em festas. Era o prato do carnaval comemorado na Ilha da Madeira, como também o prato principal nas festas do Espírito Santo nos Açores. Mesmo sendo quase impossível se definir uma origem única e concreta, aprendi desde cedo, com meus avós portugueses, que o cozido era o prato para a reunião da família.

Prato que ganhou batata, milho e outras iguarias típicas e nativas das Américas, do Novo Mundo. Aqui na família, mantemos uma tradição de intimidade com as alquimias culinárias. Cristina foi iniciada e hoje domina com maestria esse conhecimento secular, tendo introduzido a banana na nossa receita. Pelo menos na atual. Para 15 pessoas, use arte, paciência e os seguintes ingredientes:

1,5 kg de patinho (ou peito)

6 paios

500 g de grão-de-bico

2 kg de batata doce

4 kg de batata inglesa

2 molhos de couve

2 brócolis

0,5 kg de vagem

1 kg de aipim (mandioca)

1 kg de costela salgada ou defumada

1 kg de lombo salgado

1 kg de cenoura

1 lingüiça portuguesa defumada

2 lingüiças calabresas

2 pacotes de lingüiça Guanabara (fininha)

2 nabos

1 repolho grande

1 kg de abóbora

0,5 kg de inhame

1 cebola grande

1 dz bananas

A magia:

Na véspera (olha o Shabat), deixe a costela salgada e o lombo de molho e vá trocando a água para tirar o sal. Depois deixe-os na geladeira. Lembre-se de que esse é um prato muito forte e se faltar um pouco de sal para alguns, sempre há um jeito de colocar sal no seu próprio prato.

Tempere o patinho com alho, sal, pimenta e vinho (pode ser aquele vinho que você ao abrir, percebeu que tinha avinagrado). Doure-o em azeite, junte a cebola picada e doure. Coloque água até a metade da panela (que deve ser grande, realmente bem grande), junte o lombo e a costela e deixe cozinhar. Prove, você não vai resistir mesmo. E quando sentir que essas carnes estão amaciando, junte os paios, as lingüiças, as cenouras, o repolho e o aipim (mandioca).

Vá tirando e colocando num tabuleiro ou pirex as carnes que forem ficando prontas (o patinho deve ficar bem macio), e os legumes “al dente”. Não podem desmanchar. Deixe esse tabuleiro no forno coberto com papel alumínio para conservar o calor. Acrescente sempre água se necessário.

À parte, prepare o grão-de-bico ou compre aqueles prontos em embalagem a vácuo. Pegue um pouco do caldo do cozido para a panela do grão-de-bico, quando estiver macio, está pronto, não deixe desmanchar. Vá acrescentando os legumes conforme os diferentes pontos de cozimentos, dos mais duros aos mais macios. Os últimos serão as couves, o brócolis e as bananas, essas por exemplo, levam só um susto no caldeirão quente.

Ligue o forno baixinho para aquecer os legumes e carnes já cozidos. Separe um litro do caldo do cozido, junte umas 250 g farinha de mandioca e faça um pirão (há quem ame, eu acho que é para entupir os mais gulosos com farinha e água). Acrescente azeite e sal se precisar. Para servir, corte os paios, as carnes, as lingüiças, os legumes grandes em pedaços menores, arrume tudo em travessas separadamente, inclusive o grão-de-bico.

Junte a família toda e sirva com alegria. Um azeite extra virgem português é fundamental. Nós comemoramos os 73 e 71 anos do papai e da mamãe, há muito tempo conhecidos simplesmente como Vô e Vó. Separei dois rosés portugueses, pois o verão do Rio de Janeiro não é a época do ano mais propícia para um cozido à portuguesa: um Bacalhôa Serras de Azeitão 2006 (consumido geladinho) e um Quinta das Amoras 2006 (ficou para a próxima).

PRC não foi condescendente com o calor e muito menos com os não-iniciados. Um tradicional cozido da família Corrêa, apesar de pouco gordo, é forte. E como consumir dois singelos rosés com tal prato? Impossível, fui obrigado a concordar. Ele nos brindou com um Batuta 2004. Meu Deus. Foi perfeito.



Você gostaria de receber as atualizações do Pô, meu! por e-mail? Clique aqui.

11 Comentários

  • Sandra Leite disse:

    que inveja (santa) eu tenho de quem sabe cozinhar :D


    Comentário do Pô, meu!
    Sandra,
    Realmente cozinhar é uma arte como escrever, pintar, compor…
    Ajuda ter um certo dom, mas nada que não se possa aprender, afinal, ninguém começa a escrever pensando em ser igual ao Drummond. ;-)
    Abraços,
    Nelson

  • Mais um ponto em comum, também gosto de cozinhar. Espero que pare por aqui, para que não tenhamos que propor casamento. Juro que não me agradaria… rsrsrsrsrsrsrs

    Comentário do Pô, meu!
    Prezado Sr. Enio,
    Minha opinião é que casamento para dar certo precisa que as pessoas não sejam tão iguais. Amigos até podem ser, mas homem + mulher, acho inviável. ;-)
    Abração,
    Nelson

    P.S. A formalidade foi para não gerar dúvidas em quem não nos conheça. ;-)

  • Paulo Corrêa disse:

    O Batuta 2004 foi um dos melhores vinhos portugueses que já degustei. A Wine Spectator atribuiu-lhe 91 pontos, mas, sinceramente, acredito que merecia um pouco mais. O Dick Nieeport têm feito vinhos maravilhosos e caiu no Douro e no Porto para “aperfeiçoar o DNA”. Produz um branco m-a-r-a-v-i-l-h-o-s-o. Trata-se do Redoma, que acompanha muitíssimo bem um risoto de camarão, e deve ser servido em torno de 12°C, para o equilíbrio entre os minerais e as frutas. Vale a pena. Em tempo: o Pô, meu! pode indicar a receita do risoto, até mesmo para que os cristãos tenham uma sugestão para a Semana Santa que se avizinha. Bjs

    Comentário do Pô, meu!
    Paulo,
    Esse Batuta foi um dos melhores vinhos que já tomei. Ele só ficaria melhor se tomássemos ele no aniversário de 74 ou 75 anos da mamãe. Veja o que o Robert Parker fala do Batuta 2004:

    2004 Niepoort Batuta
    Rating: 95 points
    Producer: Niepoort
    From: Douro, Portugal
    Variety: Proprietary Blend (a dry red table wine)
    Drink: 2008-2021
    Source: Wine Advocate #169 (Feb 2007)

    Opa, vamos fazer essa receita de risoto para testar quando? ;-)

    Beijos,
    Nelson

  • Claudia disse:

    Primo, tentei deixar um recadinho no seu blog por conta da receita do cozido, mas tava dando erro.
    Deixo aqui então.

    Apenas para falar que fiquei com água na boca com essa receita!! rs
    Afinal, minha mãe, como uma cozinheira de mão cheia, me acostumou a uma ótima comida!
    Beijinhos


    Comentário do Pô, meu!
    Oi Claudinha!
    Que bom receber você por aqui! Fico muito feliz com a sua visita e com seu comentário.
    É verdade, sua mãe também era uma cozinheira de mão cheia. Tenho muito carinho por ela e pelo seu pai. Eles foram muito importantes para mim.
    E pode ficar com água na boca, pois esse cozido estava muito bom. ;-)
    Beijos em todos,
    Nelson

  • Claudia disse:

    Obrigada pelas palavras carinhosas em relação aos meu pais. Posso afirmar que a recíproca era veradeira em relação a vc, pais e irmãos.
    Beijnhos

    Comentário do Pô, meu!
    Claudinha,
    Vocês moram nos nossos corações.
    beijos em todos,
    Nelson

  • Olá Nelson,

    Estou elaborando um estudo sobre o Perfil do Consumidor de
    Vinho. Para isso criei uma pesquisa online e rápida, de multipla
    escolha, que se responde em 1 minuto.

    Se puder me ajudar a divulgar entre seus leitores eu agradeceria muito.

    É só acessar o link abaixo. Em cada questão selecione a resposta e
    clique em “votar” e vá para a próxima :

    http://www.enochatos.com.br/index.php/2008/05/03/perfil/

    São só 12 questões de multipla escolha.

    Obrigado,

    Claudio
    http://www.enochatos.com.br

    Comentário do Pô, meu!
    Jabá realizado caro amigo Claudio.
    Vou passar lá para contribuir com sua pesquisa.
    Ah… obrigado pelo blog, o Enochatos está cada vez melhor.
    Abraços e sucesso,
    Nelson

  • Carla disse:

    Valeu obrigadooo pela receita e que você tenha sempre ótima para experimentarmos obrigadooo
    gostei bastante

    Comentário do Pô, meu!
    Olá Carla!
    Obrigado pela visita e pelo seu comentário.
    Estamos para fazer uma noite mexicana aqui em casa e assim que fizermos, prometo colocar uma receita mexicana nova. ;-)
    Abraços e sucesso,
    Nelson

  • Galvão disse:

    Anos atrás havia na Rua: Haddock Lobo_SP um Restaurante onde serviam aos domingos um COZIDO A PORTUGUESA (self service) de encher os olhos (e o estômago), “MARAVILHOSO”, para dizer o mínimo Hoje, contudo nao encontro um restaurante com esta proposta em São Paulo, tão comum no Rio de Janeiro. Pergunta: Terei que ir até o RJ para degustar desta iguaria?
    Obs: Agradeço imensamente pela receita, mas ficaria ainda mais agradecido por uma indicação de um restaurante em São Paulo, pelo quê desde já, meu muito obrigadinho.

    • Nelson disse:

      Olá Galvão! Obrigado pela visita e comentário.

      Olhe, eu morei alguns anos em São Paulo e posso te gartantir que durante aquele tempo, poderia haver até igual, mas não havia melhor cozido a portuguesa em São Paulo do que o da minha casa. :-)

      Vários paulistanos foram iniciados como comensais dessa iguaria lá em casa, e o assédio para uma outra vez sempre foi muito grande.

      Hoje não sei onde você pode comer um cozido de qualidade em São Paulo. Aliás, nem no Rio eu sei onde se come um com qualidade (comercialmente), pois o ideal é aquele feito para ser servido a todos ao mesmo tempo (preferencialmente depois que a temperatura baixar a níveis suportáveis). ;-)

      Abraços e sucesso,
      Nelson

Deixe uma resposta