Equinócio de Outono
- Por Nelson Correa
- 5 abril, 2009
- 14 Comentários
– Osvaldo, me traga mais gelo e renove esses salgadinhos por favor. Ah! Capricha nas castanhas de caju.
– Furtado, só você mesmo que ainda consegue me fazer beber destilados.
Levanta o copo para um brinde, com um sorriso que revela o carinho daquela amizade antiga, o senhor de cabelos brancos sentado ao lado direito do poster que mostra uma imagem das Highlands escocesas, localizado na ala esquerda do O’Brien’s Scotch Bar.
– Olhe Álvaro, isso não é qualquer destilado não. Isto é um Chivas Regal 18 anos. Perfeito! Você sabe que prefiro os blends envelhecidos em barris de carvalho ao invés de barris de mogno. E essa garrafa só é aberta nos nossos encontros. Desnecessário te repetir a história que a palavra whisky é derivada do celta “uisge beatha” que significa “água da vida”. Um brinde à vida Álvaro!
Responde depois de um longo suspiro após sorver um belo gole o senhor magro e com calvície bem acentuada, sentado do outro lado do poster. Ele bebe o final do copo ao mesmo tempo que o garçom Osvaldo repõem o gelo e os salgados. Osvaldo é bem mais novo que aqueles senhores, mas os serve toda terceira quinta-feira do mês há 17 anos. Exceto quando morreu a mulher do Prof. Álvaro.
Eram velhos amigos. Álvaro Duarte de Melo, jornalista, professor e escritor, 78 anos, viúvo havia 4 anos e três meses (ele não perde a conta), 8kg acima do peso, apesar dele achar que está só 3. Três são as suas pontes de safena, duas são as suas pontes de mamária. Antônio Furtado Filho, 81 anos, advogado tributarista, divorciado há meio século (ou quase) e solteiro por convicção (se vangloria de só errar uma vez), diz que o amigo tem mais pontes no coração que o Rio Hudson entre Manhattan e New Jersey.
– Me conte Álvaro, como foi a consulta com o seu cardiologista? Estou ansioso para saber o que ele falou.
– Furtado, ele me disse que o risco é altíssimo. Minha idade somada ao meu histórico cardiológico me dão 90% de chance de morte. Pelo menos na visão dele. Talvez exagerada, mas ele é o meu cardiologista desde o meu primeiro enfarte.
– Mas esse risco é só para o Viagra ou as drogas mais novas como o Levitra ou Cialis também podem ser tão arrasadoras.
– Todas elas. E o pior é que além de poder morrer durante, posso morrer antes, pois a primeira condição obrigatória para tomar uma dessas novas maravilhas da medicina, seria parar de tomar meu vasodilatador, pelo menos uns 3 a 5 dias antes.
– Álvaro meu velho companheiro, esquece isso então. Meu Deus, como eu agradeço nunca ter conseguido aprender a tragar um cigarro. Tenho certeza que o seu tabagismo foi a causa de todos os seus males cardiológicos.
– Já pensei em esquecer esse sonho Furtado, mas não consigo, é mais forte do que eu.
– Te entendo caro amigo.
– Eu era um morto-vivo, vivia deprimido, me enchendo de remédios para dormir, e Aninha transformou minha vida Furtado. Como deixar de me agarrar nessa corda que me liga ao que me resta de vida? Ana Paula é o meu cordão umbilical com a vida e não estou preparado para continuar vivendo sem ele.
Não era a tradição, mas Álvaro encheu sua segunda dose e nem colocou uma pedra de gelo nova. Furtado estático, sentia em si a dor do amigo.
– Essas meninas se apaixonam por seus professores com a mesma facilidade que um feijão germina no algodão molhado. Também, se apaixonar por alguém com uma mente iluminada e brilhante como a sua, não é difícil para nenhuma mulher. Só me deixa perplexo a idade dela. Quantos anos tem Ana Paula?
– Vinte e cinco anos Furtado. Mas Aninha também é brilhante. É disparada a melhor aluna do curso de pós-graduação em jornalismo político…
A mão ainda firme do professor leva o copo a boca, sorve um gole de seu whisky e, com o olhar acima da cabeça do amigo, para o infinito, suspira e completa a frase.
– … e é linda.
– Vocês já estão… posso chamar de namorando?… Há quanto tempo?
– Quase oito meses. Meu Deus, quando eu imaginaria que aqueles cafezinhos com broa de milho após as aulas nos levariam à situação que vivemos hoje?
– E a depressão? Os remédios para dormir?
– Nada, Furtado. Há meses que durmo um sono profundo e recompensador. Quase como uma criança. Olhe, nosso relacionamento progrediu muito devagar. Foram dezenas de cafezinhos até o primeiro almoço juntos, no bandejão da própria universidade. Daí até sairmos para jantar, eu nem sei mais quanto tempo demorou.
– Osvaldo, meu camarada.
Acena Furtado para o garçom.
– Por favor, abra uma nova garrafa.
– Mais gelo doutor?
– Não. Mas traga novos salgados. Sem levar estes aqui.
Virando-se para o amigo, que olha o copo como se além dele houvesse todas as montanhas escocesas.
– Mas você dormiu com ela, não dormiu?
– Sim. Uma vez fomos ao teatro, depois jantamos e fui deixá-la em casa. Ela me convidou para subir. Provar um licor que havia ganho de uma amiga que chegara da Europa dias antes. Mesmo cansado, eu fui. Não me pergunte qual foi o licor, pois nada mais que não seja Aninha ficou na minha memória dessa noite.
– Pode deixar a garrafa Osvaldo, nós nos servivos, obrigado. E houve outras vezes Álvaro.
– Sim, é claro! Furtado, desde quando eu era menino, ali pelos 16, 17 anos, eu não reparava que a auréola de um mamilo tem tamanho e também tem cor. As de Aninha são grandes e cor de rosa. Que lindos seios tem Aninha. Me apaixonei perdidamente.
– Álvaro, eu também sou apaixonado por todas as mulheres entre 18 e 30 anos. Depois dos trinta, acho até que elas ganham em conteúdo, você me entende não é, mas já não são todas que me apaixono. Mas vou passar a reparar se os mamilos tem cor também.
– Estou falando sério Furtado. Eu passei mais de sessenta anos sem perceber que são divinos os pelinhos clarinhos que existem no finalzinho das costas.
– Ela sabe da sua situação, não sabe?
– Claro. Foi a primeira coisa que falei com ela quando subi ao seu apartamento no dia do teatro e do licor. Ela diz que não se importa, que me ama, mas caramba, isso não existe. Ela é jovem e não pode sustentar muito tempo essa relação desalinhada, cubista.
– Mas não acontece nada com vocês.
– Ora Furtado, só não tenho ereção.
– Ok, ok. Não se estresse. Eu entendi.
– Acho que já passei da conta hoje. Vamos ir andando?
– Claro, vamos. Osvaldo. Osvaldo. A conta por favor.
Na porta do táxi, um longo abraço fecha aquele encontro, talvez o mais longo que os amigos tiveram. Certamente o que Álvaro saiu menos sóbrio.
– Álvaro, mês que vem está confirmado?
– Vamos ver. Estou pensando muito e vou tomar uma decisão se uso ou não o medicamento.
– Calma lá rapaz. A vida não se resume toda nessa coisa rígida ou flácida. Pare com essas besteiras e vamos mais uma vez brindar à vida.
Com um leve sorriso nos lábios, Álvaro balança a cabeça positivamente e entra no seu táxi, sem antes dizer:
– Sim, vamos brindar à vida.
Um mês passou rápido. 20 de março, início do Outono. Furtado entra no O’Brien’s Scotch Bar e se dirige à ala equerda. Acena para Osvaldo e se senta, como sempre, à esquerda do poster das Highlands escocesas. Olha o relógio e vê que estava um pouco atrasado para seu encontro mensal com o amigo Álvaro.
– Boa noite doutor Furtado.
– Boa noite Osvaldo. O professor Álvaro não chegou ainda?
– Doutor, o professor passou aqui bem cedo hoje a tarde e deixou esse envelope para o senhor.
– Envelope? Deixe-me ver. Obrigado Osvaldo.
– Posso trazer sua garrafa doutor?
– Sim, como sempre.
Dentro do envelope, Furtado encontra uma embalagem desmontada do remédio que poderia matar o amigo Álvaro. No verso, um recado:
“Caro amigo, sua frase de despedida ficou martelando a minha cabeça por vários dias e várias noites… brindar à vida. Hoje no nosso ciclo de estações, entramos no Outono. Nada tão banal. Mas para os antigos Celtas, era o Equinócio de Outono. Época de celebrar o término da colheita de grãos, e também época de agradecer, meditar e fazer uma introspecção. No dia de hoje, os Bruxos, realizavam cerimônias de iniciação pela Alta Sacerdotisa e pelos Sacerdotes dos covens. Para os antigos era uma noite mágica, em que as pessoas se juntavam para o fechamento dos antigos negócios do verão e coletar sementes para o novo ciclo. Nesse momento, dia e noite são iguais, é um tempo de equilíbrio e balanço, mas as sombras começam a dominar a luz. Nesse festival, a Deusa lamenta que seu consorte está partindo ao Outro Mundo, mas a mensagem de seu renascimento pode ser entendida em cada semente colhida. Um brinde à vida meu amigo!”
Furtado se desespera, saca o celular e tenta inúmeras vezes os números de Álvaro, tanto o de casa, quanto o do trabalho e o celular. Esse ele tocou até quase acabar com a bateria. Nada, nenhuma resposta. Corre uma lágrima no canto do olho do duro advogado. Ele seca-a com a manga da camisa. Enche seu copo, e enche o copo que seria de Álvaro de gelo, e completa com seu whisky 18 anos. Pela última vez, ergue o copo e brinda à vida.
– Bonito não é? Começou sem me esperar!
– Álvaro? Mas… você… então… não tomou o remédio?
O professor que irradiava felicidade, apesar de às vezes fechar a expressão facial rapidamente pelas pontadas de dor no peito, senta-se, calmamente pega seu copo, bate no copo do amigo que estava estático e petrificado, bebe um grande gole, pousa o copo junto com um retesada rápida da face e diz:
– Foi lindo Furtado. Foi uma energia tão forte que só me lembro, vagamente, de outra igual, quando na noite de núpcias, despi e me deitei pela primeira vez com Regina, que foi meu único e grande amor a vida toda. Eu tinha só 22 anos.
Álvaro dá mais um gole e Furtado atônito esperando a revelação.
– Eu usei o remédio Furtado. Foi uma decisão madura e sem volta.
– Foi uma decisão de coragem meu amigo. Fico orgulhoso por você, mas juro que estou muito assustado. E Ana Paula, onde está?
– Ela ficou muito feliz por ter me ajudado. Nos amamos muito caro amigo, como nunca em minha vida eu havia tentado. Ela adormeceu. Eu tomei um banho e vim brindar à vida com o meu grande amigo, o maior de todos.
Mais uma pontada sente Álvaro, mas que não o impediu de erguer o copo e brindar fortemente com Furtado. O barulho de vidro partido ecoou pelo bar. O líquido derramado escorria pela mesa. Todos olhavam aquele senhor calvo chorando como criança tentando animar o senhor de cabelos brancos que jazia o rosto inerte na mesa do canto esquerdo, aquela ao lado do poster das Highlands escocesas.
Ora veja só, Geekman em um dos melhores textos. O’Brien’s Scotch Bar, gostei do nome. Texto que convida sempre para o próximo diálogo, sempre tão rico em detalhes. História de amizade e amor, paixão e compromisso. História que me lembra um resgate. Que Álvaro descanse em paz! Celebremos o Outono!
PS: o que o Furtado vai fazer? Vai ter continuação?:)
beijos, geekman
Oi Sandra,
Obrigado.
Não pensei em continuação da história não, mas ficou o registro da dica.
;-)
beijos,
Nem tem muito o que comentar. Simplesmente maravilhosa, a história.
E um grande brinde ao Álvaro!
Grande Enio,
Obrigado!
Um brinde à vida!
:-)
Abração,
Li hoje as 06:00h, quase chorei, e só agora consegui tempo para comentar.
Texto maravilhoso, em particular me tocou bastante (não, ainda não sou broxa :).
Primeiro eu adoro Chivas, é o melhor!
Depois tem isso de diferenças de idade no amor, estou vivendo isso.
E tem aquilo que muitos acreditam não existir, a pessoa da sua vida… E eu acho que encontrei.
Tenho um sonho que me persegue desde criança, onde já velho moro nas Highlands em uma casa de pedra, e lá estou eu com a mulher da minha vida.
Muita coisa correlacionada que você sem querer terminou juntando tudo.
Incluindo uma morte muito digna.
Abraços
Caramba, meu amigo Chantinon!
Às vezes a gente escreve alguma coisa e acha que não ficou legal, que não tem nada a ver, principalmente quando a gente é excessivamente crítico. E eu sou muito crítico comigo, sou mesmo é chato.
Mas aí você vê, alguém lê e encontra um monte de referências que tem significado para a pessoa. Foi o que aconteceu com você.
Eu fico um feliz por você ter se emocionado. Olha, isso é muito legal. E fico super feliz, porque você, como eu, se amarra nas Highlands.
Um grande brinde à vida!
:-)
Abração
Nelson sua ficçao esta ficando cada dia melhor!Tb adoro destilados ,é a unica coisa que bebo fora agua e leite,mas prefirto o JW.Qto as diferenças de idade ,nao vou torcer contra mim nao é?!rs…abs
Oi Nine,
Vou acabar acreditando nisso. Mas ainda prefiro quando escrevo sarcasticamente e faço críticas. Talvez porque escrever ficção você se exponha muito mais. É insegurança mesmo. Mas que bom que você gostou.
:-)
Olha, o Johnny também é envelhecido em barris de carvalho, e é muito bom também. Aliás, o álcool, sem excesso, sempre vai ficar muito melhor por conta da companhia.
E o que é idade? Sei lá o que é isso! Principalmente porque estou me sentindo meio estranho com a proximidade de troca de década.
;-)
Beijo,
Nelson where are you?Enricou? onde voce esta homem que nao escreve?Nos abandonou?
leitora carente da Terra da garoa
Oi Nine,
Enriquei que nada. Muito pelo contrário. Quando a grana tá fluindo com mais facilidade eu escrevo mais.
:-D
Na verdade eu estou super concentrado na partida de um negócio novo e tenho realmente deixado de lado o prazer de escrever aqui. Tenho sido mais presente no Twitter e falado mais com os amigos no MSN.
Mas já, já, volto a poluir a Internet.
Beijos
Caro irmão;
Tem certeza que está na profissão certa? Tecnologia é exatas!!!!! Quanta emoção neste texto.
Apesar de ser sua irmão há menos tempo que seu meio século, me surpreendeu!
Kisses
Oi irmã,
Sinceramente não sei se estou na profissão certa. Sou apaixonado por tecnologias sim, mas também sou apaixonado pelas palavras. Acho que talvez ainda tenha tempo de aprender a fazer uma das duas direito.
:-D
O mais gostoso é conseguir tirar alguma emoção das pessoas com o meu texto. Obrigado.
kisses,
Meu Padrinho,
Fiquei orgulhoso por saber que de alguma maneira participei na elaboração desta crônica. Os destilados escoceses continuam me provendo momentos deliciosos.
Vejo a cada dia que Vinicius estava correto.
“Eu nunca vi homens fazerem amigos em leiterias. O Uísque é o melhor amigo do homem, o cachorro engarrafado.”
Saudações Mangueirenses
Grande Rafa,
Sem sua aula sobre envelhecimento dos mais famosos destilados escoceses, esse miniconto perderia uma parte de sua essência… essência de malte.
;-)
Abração,