Outra história com meu avô


É sempre muito bom me lembrar do meu avô, sinal que ele continua vivo no meu coração. Acho que mais do que isso, lembrar-me dele é sinal de quão importante ele foi para mim. E às vezes, do nada, me lembro de alguma cena com ele. Já disse aqui nesse Pô, meu!, mas vou repetir para quem nunca leu, que meu avô é minha inspiração para esse blog. Ele morreu quando eu tinha 15 anos. Eu queria mais tempo com ele, mas tudo bem, o tempo que tivemos juntos aqui foi ótimo.

Ele era um exímio contador de histórias, e essa era uma das maneiras que ele tinha para entreter os netos. Eu adorava todas as histórias, mesmo as que eu já tinha quase toda decorada. Não me cansava de ouví-las. Esqueci quase tudo. Me lembro de alguns fragmentos. Uns maiores, outros insignificantes, mas nenhuma história inteira. Éramos, eu pelo menos era, bem pequenos quando ouvintes das histórias do meu Vô Manoel.

Havia também algumas musiquinhas que imagino, terem tradição na região de Portugal de onde ele nasceu e foi criado, o distrito de Trás os Montes, mais precisamente na pequena cidade de Vila Real, no Alto Douro. Hoje, enquanto preparava um lombinho de porco assado ao vinho com batatas coradas, me apareceu na lembrança uma musiquinha que ele cantava. A história versa sobre uma determinada pessoa que tinha vários “filhinhos” e os mandava fazer alguma coisa que rimava com um algarismo, e que, depois dessa ação, o total de “filhinhos” era diminuído de um, por exemplo: mandei-os comer biscoito, ficaram oito.

Havia uma sequência de palavras na música que gerava um arquivo sonoro na minha memória: deu-um-tango-rico-tango-mango-neles. Isso entrava logo após a ação, ele mandava os “filhinhos” executarem alguma ação e dava um “um-tango-rico-tango-mango-neles” e dos nove ficaram oito. E por aí se desenrolava a história até que ficava somente um.

Mas como achar a letra da música só com essa sequência sonora, que nem sei se se escreve como estava impresso na minha memória: “deu-um-tango-rico-tango-mango-neles”. Parti para a busca no Google. E só não foi mais frustrante porque sem querer, acabei esbarrando em outra musiquinha que ele cantava para os netos, e eu adorava. Contava a história de um marido que oferecia vários tipos de presentes diferentes para a mulher e nenhum servia à esposa por diversos motivos que ela ia alegando verso após verso. Mas no final, ficamos sabendo que a esposa era uma apreciadora de vinhos (ou beberrona?) e pedia ao marido o que ia lhe dar prazer, o vinho, já que a água lhe fazia mal (será que vem daí minha aversão a água pura?)

Ó mulher, ó mulher, eu te dava umas luvas
Isso não marido, não, que não sou mulher de uvas!
Ó mulher, ó mulher, eu te dava umas meias…
Isso não marido, não, que me faz as pernas feias!
Ó mulher, ó mulher, eu te dava uma saia…
Isso não marido, não, que não sou mulher de praia!
Ó mulher, ó mulher, eu te dava umas botas…
Isso não marido, não, que faz as pernas tortas!
Dai-me antes um viinho, prá alegrar (ou seria regar?) o meu peitinho…
Que a água me faz tão mal!

Que legal achar esse fragmento. Parece que estou ouvindo e vendo ele cantar essa musiquinha para nós. O último verso era quase falado, palavra a palavra e dava um fecho que eu adorava a musicalidade. Acho que ele tinha muitos mais versos, o marido queria dar tudo para a mulher, mas ela ficaria muito mais satisfeita com o vinho. Muito bom achar essa música.

Mas eu sou ariano, consequentemente, chato e teimoso. Voltei ao Google atrás do “tango-rico-tango-mango-neles”. E filtra aqui, filtra ali, muda-se as palavras de busca, coloca-se algumas dentro de aspas. Nada. Resolvi ampliar a busca, deixei o “tango-rico-tango-mango-neles” e parti para o cancioneiro folclórico de Portugal. Bingo! Uhu! Achei! \o/

Minha memória sonora, que hoje é espetacular, naquela época, certamente, ainda estava em formação. Não tinha nada com “tango-rico-tango-mango”, o som era parecido mas na verdade se escreve exatamente “tranglomanglo”. Hehehehehehe. Pode até ser que distante da sua terra por algumas décadas, meu avô pudesse ter se esquecido ou alterado o som original. Eu acredito que eu é que não tive a capacidade de guardar o som certo. ;-)

Imagem: From Spekulator @ stock.xchng

Photo by Spekulator @ stock.xchng

Dos treze filhinhos que eu tinha
mandei-os fazer um doce
e deu um tranglomanglo neles
de treze só ficaram doze.

Dos doze filhinhos que eu tinha
mandei-os vestir de bronze
e deu um tranglomanglo neles
de doze só ficaram onze

Dos onze filhinhos que eu tinha
mandei-os lavar os pés
e deu um tranglomanglo neles
dos onze só ficaram dez

Dos dez filhinhos que eu tinha
mandei-os pedir um pote
e deu um tranglomanglo neles
de dez só ficaram nove

Dos nove filhinhos que eu tinha
mandei-os comer biscoitos
e deu um tranglomanglo neles
de nove só ficaram oito

Dos oito filhinhos que eu tinha
mandei-os ir à retrete
e deu um tranglomanglo neles
de oito só ficaram sete

Dos sete filhinhos que eu tinha
mandei-os cantar os reis
e deu um tranglomanglo neles
de sete só ficaram seis

Dos seis filhinhos que eu tinha
mandei-os comprar um brinco
e deu um tranglomanglo neles
de seis só ficaram cinco

Dos cinco filhinhos que eu tinha
mandei-os mascar tabaco
e deu um tranglomanglo neles
dos cinco só ficaram quatro.

Dos quatro filhinhos que eu tinha
mandei-os lá outra vez
e deu um tranglomanglo neles
de quatro só ficaram três

Dos três filhinhos que eu tinha
mandei-os dar de comer aos bois
e deu um tranglomanglo neles
de três só ficaram dois

Dos dois filhinhos que eu tinha
mandei-os matar um peru
e deu um tranglomanglo neles
de dois só ficou um

Desse um filhinho que eu tinha
mandei-o amassar o pão
e deu um tranglomanglo nele
e acabou-se uma geração.

Apesar de surpreso com o pai ou a mãe, não lembro, desnaturados, que permitiam que o tal do “tranglomanglo” acabasse com todos os filhos, eu adorava a história. Tinha sempre a espectativa que sobrasse algum. E nunca sobrava. Também, é claro, não faço a mínima idéia hoje, do que é o “tranglomanglo”. Google de novo? Topo! :-)

Segundo o Dicionário Global (aqui), tranglomanglo é: (1) Sortilégio, bruxedo, malefício; (2) Doença atribuída a bruxaria; (3) O m. q. tangromangro.

Ainda vou me lembrar de mais histórias/musiquinhas que meu avô me contava e me cantava e tentar recuperá-las com a ajuda do Google. ;-)



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