Senhor professor doutor


Li hoje o artigo Da qualidade de se chamar pelo nome do amigo blogueiro Alessandro Martins, em um de seus blogs, o Livros e afins. O post é só a citação de um trecho do livro Em que crêem os que não crêem, de Umberto Eco. E se basta. Reproduzo abaixo:

(…) não me considere desrespeitoso se me dirijo ao senhor chamando-o por seu nome próprio, sem referir-me às vestes que enverga. (…) sempre me impressionou o modo como os franceses, quando entrevistam um escritor, um artista, uma personalidade política, evitam usar apelativos redutivos, como professor, eminência, ou ministro. Há pessoas cujo capital intelectual é dado pelo nome com que assinam as próprias idéias. Assim, os franceses se dirigem a qualquer pessoa cujo maior título é o próprio nome, com “diga-me, Jacques Maritain”, diga-me, Claude Lévi-Straus”. É o reconhecimento de uma autoridade que se manteria mesmo se o sujeito não tivesse se tornado embaixador ou acadêmico da França. Se eu tivesse que me dirigir a Santo Agostinho (e também por essa vez, não me julgue excessivamente irreverente), não o chamaria de “Senhor Bispo de Hipona” (pois muitos outros depois dele também foram bispos daquela cidade), mas de “Agostinho de Tagasta”.

LivrosO livro de onde foi retirado o texto acima reproduz um diálogo travado na troca de cartas, entre Eco e o cardeal Carlo Maria Martini, publicado pela revista italiana Liberal. Umberto Eco, o laico, levanta dúvidas e discute com um sacerdote, temas como: a existência e a invenção de Deus, os fundamentos da ética, a mulher, o sacerdócio, a liberdade de escolha e de ação frente aos imperativos religiosos, o aborto, a engenharia genética, o respeito a vida, dentre outros.

O pedaço reproduzido no Livros e Afins, que copiei aqui no Pô, meu!, é na verdade a introdução da primeira carta escrita por Eco. Ele solicita ao cardeal Martini a liberdade de chamá-lo pelo nome, sem as pompas que a posição de Martini na hierarquia da Igraja Católica poderiam exigir. O cardeal inicia sua carta respondendo ao escritor: “(…) este é um intercâmbio de reflexões realizado entre nós com liberdade, sem espartilhos nem implicações de cargo algum.(…)”. Muito bom o livro.

Mas esta leitura me remeteu a um email que recebi meses atrás sobre uma discussão semelhante, apesar de eixo antagônico. O caso aconteceu em Niterói, antiga capital do Estado do Rio de janeiro. Um juiz de direito (juiz togado) não gostou que um dos funcionários do prédio onde morava, não o tivesse tratado por “doutor”. O funcionário dirigiu-se a ele por “você”. Indignado com o desrespeito, pelo menos na opinião dele, o juiz de direito entrou com uma ação pedindo indenização ao condomínio por danos morais, no valor mínimo de 100 salários mínimos.

A sentença que negou o pedido do juiz de direito que se sentia ofendido, é um primor de respeito aos princípios de cidadania de uma sociedade sem castas. Particularmente, acho que o uso de ‘senhor’ ou ‘senhora’ para pessoas mais idosas ou desconhecidas, uma prática que não denota nenhuma submissão de castas. Mas acho também que um bom papo com o síndico do prédio, resolveria o problema do ‘você’ e evitaria a alocação de recursos – escassos – do judiciário. Algumas partes estão abaixo. O processo é o de número 2005.002.003424-4 e é público. Se você quiser acompanhar o seu andamento, basta acessar o site do Tribunal de Justiça e fazer uma Consulta Processual pelo número acima na caixa de texto em que aparece 1ª Instância / juizados. Ou ir direto neste link do Tribunal onde há uma cópia scanneada do processo.

(…) Disse o requerente que sofreu danos, e que esperava a procedência do pedido inicial para dar a ele autor e suas visitas o tratamento de ‘Doutor’, ‘senhor’ ‘Doutora’, ‘senhora’, sob pena de multa diária a ser fixada judicialmente, bem como requereu a condenação dos réus em dano moral não inferior a 100 salários mínimos. (…)

(…) ‘Doutor’ não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento. Emprega-se apenas às pessoas que tenham tal grau, e mesmo assim no meio universitário. Constitui-se mera tradição referir-se a outras pessoas de ‘doutor’, sem o ser, e fora do meio acadêmico. (…) Por outro lado, vale lembrar que ‘professor’ e ‘mestre’ são títulos exclusivos dos que se dedicam ao magistério, após concluído o curso de mestrado.(…)

(…) Embora a expressão ‘senhor’ confira a desejada formalidade às comunicações – não é pronome -, e possa até o autor aspirar distanciamento em relação a qualquer pessoa, afastando intimidades, não existe regra legal que imponha obrigação ao empregado do condomínio a ele assim se referir. (…)

(…) O empregado que se refere ao autor por ‘você’, pode estar sendo cortês, posto que ‘você’ não é pronome depreciativo. (…) Na verdade ‘você’ é variante – contração da alocução – do tratamento respeitoso ‘Vossa Mercê’. (…)

(…) Urge ressaltar que tratamento cerimonioso é reservado a círculos fechados da diplomacia, clero, governo, judiciário e meio acadêmico, como já se disse. (…) Mas na relação social não há ritual litúrgico a ser obedecido. (…)

(…) Isto posto, por estar convicto de que inexiste direito a ser agasalhado, mesmo que lamentando o incômodo pessoal experimentado pelo ilustre autor, julgo improcedente o pedido inicial, condenando o postulante no pagamento de custas e honorários de 10% sobre o valor da causa. (…)

P.S. 1) Posso ser chamado de Nelson do Pô, meu!

P.S. 2) Também posso ser chamado de Nelson da Cris, Nelson do Dani, Nelson da Ju. Um dia quero ser chamado de Nelson, avô de Cateto, avô de Hipotenusa, avô de Bósnia e avô de Herzegovina. Espero que até lá meus filhos amadureçam e repensem estes nomes.
;-)



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9 Comentários

  • Franco disse:

    Gosto mais de querido Nelson.

    Comentário do Pô, meu!
    Queridão, plagiando a Lucia (Ladybug com belo post sobre o outubro rosa), valeu!!!
    :-D
    Abração,
    Nelson

  • Dayse Corrêa disse:

    Hi brother! (ehehehehe… eu também o chamo assim!). São tantos formalismos que não levam a nada. Depois ainda custou a pagar os honorários sucumbênciais (em bom ‘juridiquês’, corolário da sucumbência!!!). Fico pensando em um depoimento pessoal que um cliente meu, engenheiro aposentado, foi prestar para tentar esclarecer o sumiço dos autos do processo onde há 10 anos ele tenta receber algo que era uma boa quantia. Pensando ser ele o maior interessado em tais esclarecimentos, mesmo tendo uma viagem para o Japão naquela noite, dirigiu-se ao fórum comigo e lá nos sentamos perante o magistrado para tais esclarecimentos. Em dado momento eu percebo que meu cliente, ao invés de estar se dirigindo ao magistrado como “meretíssimo” dizia confiante “meretríssimo”. Já imaginou se tivesse ele que indenizar por quantas vezes falou errado?? Entretanto, vale dizer que, para mim, como advogada militante, tomar conhecimento de tal sentença fez bem, já que o Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito responsável pela ‘dita’, mostrou não só o discernimento mas também a imparcialidade. Valeu pelo post, pela sentença e por Eco.

    Comentário do Pô, meu!
    Hi sister!
    Aos poucos a gente vai quebrando esses vínculos com a corte que aqui ficou instalada por muitos anos. Veja que os ingleses, apesar de ainda terem a figura do monarca, usam para falar com as pessoas somente “you”. O porteiro inglês, na passagem do visitante pela portaria, não tem opção, fala somente: “Where are YOU go?”. O nosso porteiro, além de perguntar para a faxineira (Aonde VOCÊ vai?) pode (deve?) se deparar com a necessidade de perguntar para o visitante (branco): “Aonde o SENHOR vai?” Mas se o visitante estiver de terno e gravata, o porteiro, se for “competente”, perguntará: “Aonde o DOUTOR vai?”
    Coisas de uma cultura que está acabando.
    Aliás, não sei se você se lembra, claro que vai se lembrar, mas o ensinamento mais importante que considero ter recebido dos nossos pais foi que o respeito não estava em tratá-los de senhor e senhora, desde muito pequenos e fora do padrão da época, chamávamos papai e mamãe de você.
    ;-)
    Beijos,
    Nelson

  • Sandra Leite disse:

    Nelson,

    Mas você é o geekman….não deixe de sê-lo, por favor :)

    Comentário do Pô, meu!
    Claro Sandra!
    Posso ser também o geekman do Pô, meu!
    :-D
    Abraços,
    Nelson

  • Chantinon disse:

    Fiquei curioso sobre o livro, inclusive acho que foi esse mesmo livro que vi um comentário que não me chamou muito a atenção… falava exatamente sobre esse modo dos franceses.
    Já sobre o Doutor Juiz, ele só está provando que é nomeado por direito, mas não por ser merecedor.
    É a prova que parte desses funcionários públicos passam mais tempo desocupado do que imaginamos.
    Eu sou fã do capitalismo das antigas, mas como tenho conversado muito com um amigo socialista (que é empresário e trabalha em 3 empregos), fico imaginando um Brasil tomado por Fideis e Ches, iria faltar paredão e balas para matar tantos traidores do povo :)

    Comentário do Pô, meu!
    Grande Chantinon,
    Na minha opinião, acho até que esse modelo antigo de nomeação é que dava essa aura de nobreza para os juízes de direito. Hoje eles fazem concurso e os atuais juízes de direito (juízes togados) são merecedores de estarem nestas funções. Mais até que deputados, senadores e até mesmo o presidente da república, que não precisam de grau de instrução algum, um advogado para se habilitar a ser juiz de direito precisa, além obviamente de ser formado em direito, de estudar bastante e passar em um concurso puxado.
    Fidel por aqui? De ditadura não quero ouvir de jeito nenhum. Nunca mais.
    ;-)
    Abração,
    Nelson

  • balard disse:

    Boa essa. Ainda bem q o juiz teve q entubar. Nem tudo é zona…
    Quanto aos nomes, melhor ir se acostumando mesmo!

    Comentário do Pô, meu!
    Balard,
    Minha esperança, ou metade dela, está depositada na Rayana.
    Tenho fé no bom senso dela.
    ;-)
    Abração,
    Nelson

  • Eu só admito que me chamem de milord Martins. ;-)

    Obrigado pelo link!

    Comentário do Pô, meu!
    Milord Martins,
    Que bom tê-lo por aqui.
    De nada, foi fácil. Obrigado pelos blogs tão bem feitos lá nas suas editorias.
    ;-)
    Abração,
    Nelson

  • Nine disse:

    OINelson ,é o fim essa açao !!mas aqui no meu predio tem um bom ex dessa mentalidade, a sindica EXIGE que os porteiros a chamem de doutora (ela nao tem doutorado nenhum!).Com a minha irreverencia bem carioca ,saindo de havaiana,falei para eles que podem me chamar de Nine mesmo…eles:_so qdo ela nao estiver olhando ,ela briga!Acredite ou nao..bj

    Comentário do Pô, meu!
    Ô Nine,
    Não vá deixar os pobres rapazes da portaria em situação de risco com a Dona Síndica hein!
    Olha, sem gastar nada, você já sabe que a tal doutora não vale a amizade, não é mesmo.
    ;-)
    beijos,
    Nelson

  • Paulo Correa disse:

    Parece-me que se revela uma verdadeira inversão de valores… Todos os comentários, sem exceção, criticam a atitude do Juiz, ao ingressar com a ação, entretanto, nem um único enaltece o Juiz que proferiu a sentença e os desembargadores que a confirmaram. Vivemos no país da crítica contundente, no qual as pessoas se ocupam em criticar, contestar, diminuir aquilo que reputam negativo, mas são incapazes de valorizar o que efetivamente merece ser valorizado. Parece-me que o mais importante no post não é a ação, mas sim a decisão sobre a mesma proferida, pois, do contrário, a atitude equivocada passa a ocupar um espaço maior do que merece, fazendo com que as pessoas se esqueçam de elogiar o que é digno de elogio. Lamentável!

    Comentário do Pô, meu!
    Meu querido Paulo,
    Não se aborreça assim.
    Sabe o que é, na maioria das vezes o cheiro da merda sobressai e até o ofusca o aroma dos melhores perfumes. Foi essa a situação.
    Também tem outro aspecto, a belíssima sentença do juiz de direito e a confirmação dela pelos desembargadores, é a atitude esperada por todos. É o lógico. As pessoas têm a tendência de achar que eles fizeram o trabalho deles, mas deveriam aplaudí-los também.
    Continuo insistindo na tese do cheiro da merda, ele mais que sobressai no ambiente, ele agride.
    Quanto a sermos o país da crítica contundente, acho que estamos bem abaixo da média dos países desenvolvidos. E depois, a crítica é uma forma de controle. Mas é claro que concordo com você e não se deve esquecer de elogiar.
    Viva os juízes de direito e os desembargadores que valorizam suas profissões fazendo justiça!
    \o/
    Abração,
    Nelson

  • Dayse Corrêa disse:

    Hi brother!!!! vale fazer um protesto aqui? Bem, se não valer já foi. Nosso irmão não deve ter lido todos os comentários já que, no meu, elogiei sim o juiz da sentença em questão, bem como, deixei claro nas entrelinhas, que a conduta de outro juiz também mereceu meu respeito: “- Entretanto, vale dizer que, para mim, como advogada militante, tomar conhecimento de tal sentença fez bem, já que o Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito responsável pela ‘dita’, mostrou não só o discernimento mas também a imparcialidade. Valeu pelo post, pela sentença e por Eco.” (elogio ao juiz da sentença)… quanto ao outro foi ser chamado de “meretríssimo” e não se insurgir contra meu cliente. Ficou aqui meu protesto… kisses for all brothers!!!!!!!!!

    Comentário do Pô, meu!
    Claro que pode fazer!
    Protesto feito.
    Beijos,
    Nelson

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